sábado, 29 de dezembro de 2007

Sobre Dor Crônica

Uma das características mais importantes na distinção entre a dor aguda e a dor crônica, além, naturalmente, do tempo de duração da condição clínica, é que a dor aguda se relaciona com alguma forma de agressão ao organismo, funcionando como um sistema de alarme, enquanto a dor crônica revela uma alteração do próprio organismo.

Há cerca de duas décadas, considerando a neurobiologia da dor crônica, alguns pesquisadores adotaram uma classificação das dores em três categorias: dor nociceptiva, com função normal do sistema nervoso; dor neuropática, que ocorre por função anormal do sistema nervoso; e dor psicogênica, que decorre de distúrbio psiquiátrico maior (psicoses). [Portenoy R.K. 1989].
Embora trauma, infecção, inflamação e degeneração tecidual, severas o suficiente para causar dor aguda sejam experiências universais, uma parcela dos casos de dor aguda evolui para dor crônica severa, incapacitante e de difícil controle.

Os fatores que determinam que a dor aguda se torne crônica permanecem incompletamente conhecidos, mas podem ser agrupados em quatro categorias: doença com lesão tecidual persistente, função anormal do sistema nervoso, lesão do sistema nervoso, e fatores psicológicos. [Rowbotham M.C. 2000].

As condições patológicas do sistema nervoso que ocorrem como conseqüência de dor nociceptiva ou neuropática de longa duração, assim como as condições de stress agudos ou prolongados, levam a uma situação em que a dor ocorre por tempo indefinido, independente do trauma inicial. Na dor crônica, o funcionamento inadequado de diversas áreas cerebrais, como as que regulam a percepção da dor, os sistemas hormonais, o sistema nervoso autônomo, o ritmo do sono e o humor, determina a manifestação de comorbidades variadas.
Distúrbios que podem ser classificados como de ordem psiquiátrica, como depressão, ansiedade e distúrbios do sono, por sua vez, contribuem para a agravação da percepção da dor. [Blackburn-Munro G., Blackburn-Munro R. 2003].

O manejo da dor crônica

A dor crônica continua a ser mal manejada - o Estudo Michigan, de 1998, revelou que mais de 70% dos pacientes continuavam com dor depois do tratamento, e 22% relatavam que o tratamento fez piorar a dor.

Uma das causas que tem sido apontada para os resultados precários dos tratamentos de muitos casos de dor crônica, é o modelo equivocado que se baseia na busca e na resolução de patologias ou lesões físicas na região referida da dor crônica. Porém, a dor crônica não só é independente de substrato anatômico, como envolve modificações dos sistemas neurofisiológicos, por fatores diversos, como a dor em si mesma, e experiências psicossociais. [Gallagher R.M. 1999].

Frequentemente, as síndromes de dor crônica são decorrentes de mudanças no sistema nervoso periférico e central, em resposta a traumas. Diversas alterações que ocorrem no sistema nervoso periférico persistem mesmo depois da cura da lesão tecidual. Da mesma forma, alterações no processamento nociceptivo no sistema nervoso central podem levar a dores persistentes. Nesse caso, não se pode esperar que intervenções cirúrgicas no local das lesões teciduais originais produzam algum benefício. [Ashburn M.A, Staats P.S. 2001].

A conceitualização e o tratamento da dor crônica baseados somente nos fatores biológicos têm se provado inadequados para pacientes com condições dolorosas complexas. [Weisberg M.B., Clavel A.L.Jr. 1999]. O diagnóstico de um distúrbio único, que deixe de abranger os componentes nociceptivos, neuropáticos e emocionais presentes nos casos de dor crônica, está associado com resultados insatisfatórios do tratamento. [Christopher C. 1992].`

O tratamento da dor crônica

Pacientes com dor crônica geralmente apresentam depressão, distúrbios do sono, fadiga e redução do desempenho físico e/ou mental. O seu tratamento requer uma abordagem multidisciplinar, que inclua os múltiplos componentes experimentados pelos pacientes. Os métodos de tratamento recomendados incluem medicação, estimulação neural periférica, eletroanalgesia, infiltração de anestésicos locais, fisioterapia ativa e intervenções comportamentais. [Bonica J. 1990].

Uma seqüência de tratamentos ineficazes, no contexto de uma dor controlada de modo precário contribui para o processo de condicionamento patológico. Nesse processo, uma reatividade emocional condicionada à sensação da dor, ativa sistemas simpaticamente mediados, que já se encontram neuroquimicamente sensibilizados, aumentando a dor e agravando os problemas psicossociais secundários concomitantes, assim como distúrbios psiquiátricos. Uma desregulação límbica (principalmente) e neuroendócrina (hipotalâmico-hipofisária) agregam comorbidades variadas, designadas como distúrbios neurossomáticos. [Goldstein J.A. 1996].

Na dor crônica músculo-esquelética, observa-se características clínicas peculiares: dor sem lesão tecidual contínua; efeito retardado; sensações desagradáveis - queimação, agulhadas, dor "profunda", dolorimento; alodínia; somação temporal; redução da amplitude de movimentos; e redução da força muscular. [Aronoff G.M. 1992].

Entre os possíveis mecanismos da dor crônica, destacam-se processos que ocorrem no sistema nervoso periférico: sensibilização de neurônios periféricos, ativação de nociceptores silenciosos; e no sistema nervoso central: hiperexcitabilidade de neurônios centrais (sensibilização central), reorganização da conectividade sináptica na medula espinal e outros sítios do sistema nervoso central, e desinibição (supressão da atividade tônica inibitória descendente e outros mecanismos antinociceptivos endógenos). [Ashburn M.A, Staats P.S. April 200].

Devido às modificações neuroplásticas típicas da dor crônica, em muitos pacientes a condição evolui para uma síndrome de dor complexa regional, que é um distúrbio heterogêneo, incluído no espectro dos distúrbios de dor neuropática. O diagnóstico dessa doença, mantida por anormalidades ao longo do neuro-eixo (sistema nervoso central, autonômico e periférico), ainda é eminentemente clínico, sendo que a utilidade de exames laboratoriais e de imagem não tem sido demonstrada. [Chung O. 2003].

Admite-se que o manejo mais apropriado da síndrome de dor complexa regional é o que se faz por meio de uma abordagem multidisciplinar, envolvendo tratamento médico, psicológico e terapia física. É preciso que o uso racional das terapias se fundamente no conhecimento atual da neurobiologia da dor, da sua modulação endógena e da sua apresentação clínica. Ver Tabela.

As medidas terapêuticas devem visar a modulação, a normalização, a supressão, ou a prevenção das anomalias no processamento da dor. A redução da dor deve servir para facilitar a participação em terapias funcionais dirigidas para a normalização e a recuperação da mobilidade, da força e da destreza do paciente.

O uso de antidepressivos e anticonvulsivantes no tratamento da dor crônica


Os avanços no conhecimento das disfunções neuroendócrinas, autonômicas e do humor que acompanham os quadros de dor crônica têm fornecido bases para a identificação de outros alvos para as intervenções e medicamentos analgésicos, diferentes dos que são normalmente usados para o tratamento da dor aguda. Para o tratamento da dor aguda, analgésicos comuns (ex., acetaminofeno, dipirona), antiinflamatórios não-hormonais (como diclofenaco e inibidores da COX-2) e opióides (codeína, tramadol, morfina) costumam apresentar resultados satisfatórios. Mas para o tratamento da dor crônica, drogas que atuam no sistema nervoso central, como os antidepressivos e os anticonvulsivantes mostram-se mais úteis, exercendo ações analgésicas por meio de mecanismos distintos dos medicamentos da dor aguda.

O desenvolvimento de novas categorias de antidepressivos e das novas drogas anticonvulsivantes criou oportunidades sem precedentes para o tratamento da dor crônica. Essas drogas modulam a transmissão da dor porque interagem com neurotransmissores específicos e canais iônicos. [Maizels M. 2005].

A eficácia do anticonvulsivante Gabapentina tem sido testada em diversas condições dolorosas crônicas, como dor neuropática e contraturas musculares. [Cohen S.P. Aug 2004; Rosenberg J.M. 1997; Serrao M. 2000]. Reduzindo a sensibilização e a excitabilidade central, o medicamento se tornou um importante agente no tratamento de condições hiperalgésicas, usado amplamente no manejo contemporâneo da dor em todo o mundo [Field M.J. 1997].


Alvos da terapêutica

Métodos

Técnicas / Drogas

Componentes fisiopatológicos periféricos – geradores periféricos de nocicepção, sensibilização periférica.

Inibição da atividade dos nociceptores / redução da sensibilização periférica e da inflamação neurogênica.

Estimulação neural periférica.

Eletro-neuro-estimulação.

Infiltração de anestésicos locais.

Reflexos medulares sensoriais, autonômicos e motores.

Ativação de interneurônios medulares inibitórios.

Reorganização de circuitos sensoriais medulares.

Estimulação sensorial não-dolorosa (fibras mielinizadas na periferia).

Antidepressivos, anticonvulsivantes.

Eletro-neuro-estimulação.

Infiltração de anestésicos locais.

Sensibilização e hiperexcitabilidade central.

Estabilização da atividade neuronal central.

Reorganização de circuitos sensoriais supra-segmentares.

Estimulação neural periférica.

Infiltração de anestésicos locais.

Anticonvulsivantes, bloqueadores de canais de cálcio – NMDA.

Estimulação da medula espinal.

Bloqueios somato-sensórios.

Disfunção da inibição nociceptiva descendente.

Ativação da antinocicepção endógena.

Estimulação neural periférica.

Eletro-neuro-estimulação.

Antidepressivos, anticonvulsivantes, opióides.

Componentes afetivo-motivacionais da dor.

Terapias psicológicas, físicas, ocupacionais.

Terapia cognitivo-comportamental.

Atividade física e intelectual; engajamento em atividades produtivas / criativas.
























Referências

Aronoff G.M. Evaluation and Treatment of Chronic Pain. Williams & Wilkins, USA (2 ed.). 1992
Ashburn M.A, Staats P.S. Management of chronic pain. The Lancet, The Pain Series http://www.thelancet.com/journal/vol357/isss1. April 2001
Blackburn-Munro G., Blackburn-Munro R. Pain in the brain: are hormones to blame? Trends in Endocrinology and Metabolism 14:20-27. 2003
Bonica J. Definition and taxonomy of pain. In: The management of pain, 2nd edn. Philadelphia: Lea and Febiger, 1990
Chung O. Complex Regional Pain Syndrome. Curr Treat Options Neurol 5(6):499-511. Nov 2003
Cohen S.P., Mullings R., Abdi S., Warltier D.C. The Pharmacologic Treatment of Muscle Pain. Anesthesiology Vol. 101 N. 2. Aug 2004
Field M.J., Oles R.J., Lewis A.S. Gabapentin (neurontin) and S -(+)-3 isobutylgaba represent a novel class of selective antihyperalgesic agents. Br J Pharmacol 121:1513. 1997
Gallagher R.M. A Community Solution to the Public Health Problem of Chronic Pain. Medical Clinics of North America (83): 3. May 1999
Goldstein J.A., Betrayal by the Brain: the neurologic basis of chronic fatigue syndrome, and neural network disorders. The Haworth Medical Press, NY/USA. 1996
Maizels M. Antidepressants and antiepileptic drugs for chronic non-cancer pain. Am Fam Physician 71(3): 483-90. Feb 2005
Portenoy R.K. Mechanisms of chronic pain: Observations and speculations. Neurol Clin 7:205-30. 1989
Rosenberg J.M., Harrell C., Ristic H., Werner R.A., de Rosayro A.M. The effect of gabapentin on neuropathic pain. Clin J Pain 13 : 251-5. 1997
Rowbotham M.C. Other Specific Pain Syndromes. Goldman: Cecil Textbook of Medicine, 21st ed. Chapter 455 W. B. Saunders Company. 2000
Serrao M., Rossi P., Cardinali P., Valente G., Parisi L., Pierelli F. Gabapentin treatment for muscle cramps: An open-label trial. Clin Neuropharmacol 23 : 45-9. 2000
Weisberg M.B., Clavel A.L.Jr. Why is chronic pain so difficult to treat?: Psychological considerations from simple to complex care. Postgrad Med 106(6):141-64. 1999

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