segunda-feira, 17 de março de 2008

A Evolução da Fisiopatologia

No século XVI, a tendência dominante da medicina é anatômica e, a partir do XVII se torna, na expressão de Harvey, “anatomia animata”, ou seja, fisiologia. O organismo é apreendido de maneira dinâmica e funcional: considerando a função do olhar mais do que o olho; não o músculo, mas a contração; não a morfologia do coração, mas a circulação do sangue. Mas Harvey era um anatomista, e só no fim do século XVIII, começo do XIX a medicina oficial passou a considerar a importância de se buscar a causa da doença menos num agente patogênico do que no esforço do organismo para responder a ele, e a centrar sua atenção menos sobre os órgãos propriamente ditos que sobre as desordens das funções, que serão consideradas como responsáveis pelas lesões e não o inverso.

A orientação progressiva foi na direção da idéia de que a doença é a própria função fisiológica desviada. Em 1877, Claude Bernard, em seu trabalho sobre o diabetes, demonstrou que a doença resulta de disfunção, estabelecendo uma homogeneidade entre saúde e doença, vistas não como duas qualidades diferentes em luta, mas “simples modificações fisiológicas” - graduações de uma com relação à outra.

Atribui-se a Magendie, mestre de Claude Bernard, a fundação do modelo funcional. Para ele, a patologia é aquilo que se afasta do normal, porque só a alteração de um estado para outro pode ser medida. Claude Bernard preconizou a noção do que depois Cannon chamou de Homeostase. Tanto para Bichat quanto para Magendie a doença é alteração, seja por aumento ou diminuição, mas alteração da própria vida. Bichat, com base nisso re-atualiza uma variação: o que se chama de “vitalismo médico”. Se tanto para Bichat como Magendie e Claude Bernard a doença não é mais considerada como uma realidade em si, é só com Broussais que se dá uma ruptura com o tema das essências mórbidas, a ontologia médica. Para ele, a doença não pode ser percebida como “ser” que pré-existiria ao processo fisiopatológico. Ela é apenas a reação e a função alterada do organismo.

No século XX, a evolução do modelo funcional se vincula às pesquisas que aprofundam o estudo dos processos mórbidos em que nenhuma lesão de órgão pode ser percebida, ou em que a lesão deve ser considerada como secundária com relação à perturbação do equilíbrio (nervoso, hormonal). Doenças em que não se percebe agente patogênico ou não têm localização precisa, como as síndromes de fibromilgia e da fadiga crônica, as possíveis lesões são tomadas como decorrentes, e não terão status etiológico.

Essa atenção ao que se chama hoje de distúrbios funcionais primários, reavivada nos últimos anos, coincide com a noção de que as disfunções são capazes de provocar verdadeiras afecções orgânicas. Mas o modelo funcional atual é bastante diferente do hipocrático.

A primazia do modelo tomado das ciências experimentais, que visa fazer da medicina uma ciência exata; a ruptura com as noções de humor, de temperamento, de tipo, consideradas pré-científicas; a consideração mínima ao exame clinico e à individualidade da pessoa do doente; a convicção de que em patologia o esforço do organismo por se defender é geralmente um esforço inadequado, se opõem ao princípio da “natura medicatrix” de Hipócrates.

Tanto a compreensão humoral quanto a fisiológica se opõem à “solidista”, anatômica. A doença como alteridade (ontológica) é substituída pela doença como alteração (disfunção). A morbidez não é mais considerada como um ser independente do organismo, que é preciso isolar e destruir, mas como um processo de reação - e mesmo como um sintoma que devemos nos esforçar por compreender em sua totalidade, posição que se desenvolve desde os anos trinta do século XX.

O modelo ontológico vigente, com suas implicações essencialistas, solidistas e das especificidades, é coerente com a visão moderna do mundo, em que mesmo a “energia” é vista como substância, em que o organismo é “uma máquina” como um relógio, e em que a doença é um estado, mais do que um processo. O modelo tem as suas vantagens, mas traz grandes dificuldades para o médico, que todos os dias se defronta com situações clínicas não explicáveis pelos excelentes meios de diagnóstico da forma, incluindo-se as radiografias, endoscopias, ultrassonografias, tomografias computadorizadas e ressonâncias magnéticas, e mesmo as provas bioquímicas. Em proporção a ser quantificada, as queixas dos pacientes, não encontrando substrato lesional, anatômico, e são então atribuídas a desordens emocionais, tipo histéricas.

A carência de explicações dos mecanismos dos distúrbios funcionais, coincidia com um desconhecimento de recursos que pudessem corrigir essas alterações e promover uma normalização funcional do organismo. Agora melhor compreendidos, dentro do quadro conceitual dos distúrbios neurossomáticos, abordados em outro capítulo, essas condições devem vir a ser atendidas de modo mais eficiente.

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