terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

O organismo como sistema aberto

Em 1953 Georges de Santillana[1] escreveu: “A física e a biologia sempre resistiram ao estudo da função em si mesma. Apegaram-se por instinto aos tipos lógicos simples - as coisas, os seres vivos. Os engenheiros é que as tiraram do impasse. Criando sistemas de comando fechado, os mecanismos automáticos e teleológicos[2] - mostraram como pensar nestes termos”.

De fato, a análise dos constituintes físicos estruturais não leva diretamente à apreciação da organização invisível que resulta da interação de processos, e que se distingue da organização morfológica visível, observável macro e microscopicamente. As analogias derivadas de modelos eletrônicos, dos circuitos de regulação e controle em máquinas (que ao mesmo tempo em que imitam organismos vivos, fornecem outro meio de abordagem além da experimentação fisiológica), permitem equacionar problemas com múltiplas variáveis.

Mesmo incluindo sistemas em equilíbrio, o organismo como tal não pode ser considerado em equilíbrio. O organismo é um sistema aberto em estado quase-estável. Leis quantitativas descrevem a cinética dos sistemas abertos, como a lei de Weber-Fechner[3] equaciona aspectos cruciais da fisiologia da sensibilidade.

Os organismos vivos respondem a estímulos externos, que resultam em perturbação e subseqüente restabelecimento do estado estável. As membranas são interfaces, não somente passivas, mas atuantes nas trocas - que são principalmente de natureza informacional - com o ambiente. Nas membranas celulares assim como na pele, da qual os órgãos dos sentidos são especializações, situam-se estruturas, nem sempre diferenciadas (como são os órgãos dos sentidos especiais) que desempenham o papel de entradas e de saídas do sistema.


As características fundamentais da vida, metabolismo, crescimento, desenvolvimento, auto regeneração, resposta a estímulos, atividades espontâneas, auto-regulação, são conseqüência do organismo ser sistema aberto. A Cibernética foi criada para tratar de tais fenômenos. A teoria procura mostrar que os mecanismos de feedback são a base do comportamento teleológico (processos dirigidos a fins específicos) nas máquinas construídas, assim como nos organismos vivos e nos sistemas sociais. Pressupõe arranjos estruturais próprios.

Há, contudo, no organismo muitas regulações que são de natureza diferente: nas quais a ordem é efetuada por uma inter-relação dinâmica de processos - nas regulações embrionárias, o todo é restabelecido decorrendo das partes em processos eqüifinais (um fragmento pode gerar todo o organismo).

As regulações primárias nos sistemas orgânicos são os processos auto-reguladores mais fundamentais e primitivos – em termos evolucionários e de desenvolvimento - têm a natureza de interações dinâmicas. Baseiam-se no fato de que o organismo é um sistema aberto que se aproxima de um estado estacionário.

Regulações secundárias sobrepõem-se às primeiras. Controladas por dispositivos fixos, especialmente de tipo retroativo (feedback), derivam de princípio geral de organização que pode ser chamado de mecanização progressiva. De início os sistemas são governados por interação dinâmica de seus componentes; depois se estabelecem disposições fixas e condições de coerção que tornam o sistema e as partes mais eficientes, mas também diminuem gradualmente e até abolem sua eqüipotencialidade.

Superpostos ao estado estável há processos ondulatórios menores, de dois tipos básicos:

1. Processos periódicos que se originam do próprio sistema, sendo então autônomos. Por exemplo, os movimentos automáticos dos órgãos e vísceras, as atividades automático-rítmicas dos centros nervosos (como do coração) e do cérebro, o movimento automático do organismo na totalidade.

2. Reações a alterações temporárias do meio, a estímulos, com flutuações reversíveis de seu estado estável - processos causados por modificadores externos, incluídos na fisiologia da excitação - perturbação temporária do estado estável a partir do qual o organismo retorna ao equilíbrio, ao fluxo uniforme.


Image by Etienne Ghys & Jos Leys

No organismo vivo o número de reações é extraordinariamente grande. A célula e o organismo não são sistemas homogêneos, mas apresentam sistemas coloidais altamente heterogêneos e por isso as reações dependem não só da ação das massas, mas também de fatores físico-químicos de adsorção, difusão etc. Tomando o ciclo vital total o processo não é estacionário, mas quase-estacionário: a vida é um equilíbrio dinâmico em um sistema polifásico. O equilíbrio estacionário (steady state) designa a constância na variação dos componentes.

A manutenção do sistema em um fluxo constante de troca de matéria-energia, e a manutenção de proporções constantes são os problemas centrais do metabolismo. A variação bi-frontal assimilação e desassimilação manifesta uma tendência no sentido da conservação de um estado.

Prigogine[4], em O Nascimento do Tempo, dá um exemplo de input informacional biológico: “O que faz uma planta saber da chegada da Primavera? Efetivamente, a temperatura varia muito, de manhã para a tarde e do dia para a noite; mas de todo esse ruído emerge um pequeno sinal que a planta é capaz de captar. Começamos assim a compreender como este pequeno sinal pode ser amplificado. Logo não será impossível chegar-se a definir transistores químicos, capazes de amplificar os sinais provenientes do mundo exterior. Uma descoberta desse gênero abriria imensas possibilidades tecnológicas. Não se trataria de interruptores rapidíssimos, mas de interruptores sensibilíssimos”.

Segue: “No mundo da biologia, estas amplificações e estruturas de não equilíbrio são moeda corrente. Encontram-se por toda a parte, e em especial na química das enzimas. A instabilidade leva à autonomia: ligeiríssimas mudanças no ambiente externo podem dar origem a comportamentos internos completamente diferentes, com a possibilidade de o sistema se adequar ao exterior”.

Comparação de variáveis elétricas entre um transistor artificial
e um canal de Potássio sensível à voltagem – um “transistor vivo”.

Aplicações terapêuticas

A noção da capacidade dos organismos vivos de responder de modo adaptativo às variações ambientais é crucial para a compreensão da racionalidade dos métodos de neuromodulação induzida por estimulação neural periférica, reunidos sob a denominação “Acupuntura Médica Contemporânea”. A disciplina médico-científica que aprofunda o estudo da fisiologia da estimulação neural periférica, desenvolve-se como prática clínica de manejo das funções neurais a partir da periferia, com efeitos locais e repercussões regionais e sistêmicas.


[1] "L'Homme Devant la Science" Rencontres Internacionales de Genéve, Ed. de La Baconniére, 1953

[2] No sentido de ter uma finalidade imediata, de gerar um efeito específico, e não no de ter uma meta, um objetivo transcendente.

[3] Lei de Weber-Fechner (Elemente der Psychophysik, 1860): descreve a relação entre os estímulos sensoriais e a transmissão dos sinais gerados nos sensores para o sistema nervoso central, resultando em percepção. A transmissão de sinais e a sua percepção, relacionada com os diversos campos sensoriais, varia linearmente na medida em que os intervalos de estímulos variam exponencialmente.
Significa, tomando a percepção auditiva como exemplo, que na percepção de alturas musicais, percebemos intervalos iguais, enquanto as distâncias entre estes variam exponencialmente; na audição, a relação entre as freqüências de 220 Hz e 440 Hz é percebida como um intervalo de uma oitava. Da mesma forma, a relação entre 440 Hz e 880 Hz é percebida como um intervalo igual de uma oitava, mesmo que a distância real entre as freqüências não seja igual.
Relações semelhantes de variação de percepção ocorrem em função da intensidade de estímulos, como na intensidade sonora, na intensidade luminosa, nas cores e outros aspectos sensoriais, como a transmissão axonal gerada por estímulos mecânicos (convertidos em modulação da freqüência de potenciais de ação) ou elétricos. Enfim, o crescimento linear de uma determinada percepção demanda uma recepção exponencialmente crescente de estímulos que a afetem.

[4] Ilya Prigogine, O Nascimento do Tempo. Edições 70. 1999

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